segunda-feira, fevereiro 17

Joaquim António Godinho - Escritor



*BUSCA INTERIOR

Há dias em que me apetece desabafar para uma folha de papel, hoje é um deles. Procuro-me, primeiro à minha volta, depois nos outros mas só me encontro mesmo quando a busca é interior.
Primeiro custava-me, sentia pudor, um género de vergonha de mim, dos meus pensamentos e sentires.
Depois fui-me tornando mais afoito nos meus próprios caminhos, ganhei prática de me devassar e me entender.
Hoje, facilmente entro na minha cabeça e me esquadrinho, perdi o receio do que vivi, talvez por ser passado e nunca o ter esquecido.
Sei que “existo logo penso”, Descartes estava enganado, o pensamento deriva do facto de se existir, não o contrário.
Entro no labirinto da minha cabeça, percorro corredores cheios de portas, só abrindo, sei o que lá está.

Abro esta e vejo o quadro.
“Largo da Casa do Povo, cheio de lama e poças de água, o amigo Lai e o meu triciclo, de quadro de madeira e almofada de flores. Bons tempos, eu era inocente e feliz. Afinal, pelos anos de 62, eu era dos poucos miúdos da terra, proprietário de um veículo. E que bonito que ele era”

Passo à frente, abro outra.
“Vejo o meu avô Chico Malarranha sentado no portão do Arreda, como sempre. Braços e pernas longas e descarnadas, barba grande num rosto magro e o eterno cordel a fazer de cinto. Um quadro que me reconforta, memória duma vida difícil que um dia vou contar, se tiver tempo e estofo para desfiar emoções. É uma vida demasiado triste, para ser contada, de ânimo leve”

Esta é mais complicada ainda.
“Está escuro, não acendo a luz porque sei o que vou ver. Sou eu, rodeado de noite e solidão. Outro quadro a ser contado; talvez um dia me aventure a entrar nas minhas catacumbas”.

Agora é tempo de sair, voltar ao meu possível hoje. Quem sabe um dia eu me sinta com capacidade para entrar em cada porta, sentar-me á beira das memórias e dar-lhes vida, contando-as detalhadamente…

Sem comentários:

Enviar um comentário