quinta-feira, fevereiro 28

55 – Periscópio «Luar dos Dias»



Um pequeno texto de que gosto muito.

Periscópio

Acordo!
Amanhece, rompe a aurora
Eu só c’o nariz de fora                   
Investigo o ambiente

Digo!
Sem sair de sob a manta
- N’uma hora não me espanta
Este dia vai ser quente

Mau!
Temos o caldo entornado!
Está inquieto este meu gado
Será lobo, ou será gente?

- j a godinho -

terça-feira, fevereiro 26

54 – Uma história antiga «Luar dos Dias»



Um caso óbvio de falta de calo.

Uma história antiga

Era um dia quente de final de Maio de 1974, e sei que era sexta-feira. Naquela manhã, à chegada ao Externato Diogo Mendes de Vasconcelos, Alter do Chão, fomos todos convocados pelos mais velhos para a “Sala da Mocidade”, (nome pomposo para um retângulo com armários nas paredes e uma desconjuntada mesa de ping-pong).
Não queriam ter aulas ao sábado, anunciá-lo ao diretor e se a reivindicação não fosse aceite, partir para a greve. Já estava tudo decidido. A nós, os mais novos, só nos restava segui-los, sob pena de levar uns “carolos” recusando-nos.
E lá fomos todos em bando para o gabinete do diretor, o senhor Padre Zé Maria (uma excelente pessoa). Lá chegados, alguém expôs a nossa (deles) reivindicação, sem esquecer de aludir à ainda terrível ameaça para aqueles tempos, a greve…
Recordo o ar divertido do diretor. Era para ele uma novidade, e inconcebível que um bando de fedelhos ousasse interpelar um respeitadíssimo representante de deus na terra. Naqueles tempos não era hábito misturar as águas. Um padre cumprimentava-se de cabeça baixa e chapéu na mão. E se alguém ousasse desrespeitar o costume, lá estava a GNR para o castigar. Muita coisa se resolvia com uma boa sova no Posto.
Então eu ouvi o Padre Zé Maria dizer-nos com um ar paternalista:
- Mas o que é isto? Guerra entre patrões e criados? Quem é aqui quem?
Fez-se um silêncio infindável. Naquela altura, os responsáveis pela baderna, já tinham recuado e deixado a frente da luta aos miúdos. Eu estava no meio da sala e ouvi-me dizer:
- Senhor diretor, não é uma questão de patrões e criados. Mas a haver patrões, somos nós. Nós é que pagamos.
O homem fez-se de todas as cores ante a afronta. Apontou-nos a porta da rua, e para as aulas já!
Depressa aconteceu a total desmobilização. Aliás os instigadores foram os mais lestos a obedecer. Ficámos 4 ou 5 em greve. Suficientemente poucos, para ser possível chamar os pais. O meu pai chegou de motorizada por volta das 2 horas e disse o óbvio:
- Eu pago para estudares, não p’ra fazer greves. Já p’ra aula.
Não havia volta a dar. Subi a escadaria, bati à porta da sala grande, aula de história da Dona Mabília e pedi licença para entrar. Olhei para os meus colegas, e com uma terrível vontade de chorar, disse:
- Estou aqui porque fui obrigado.

E assim terminou, sem honra nem glória, o meu primeiro ato político.

- j a godinho -

segunda-feira, fevereiro 25

53 – Soneto inacabado I «Luar dos Dias»



Um caso de aproveitamento da minha inabilidade.

Soneto inacabado I

Trago nos braços um enorme ramo
De rosas de cores várias e garridas
Feito de tantas juras falsas e fingidas
E no peito um esquecido “eu te amo”

Eu até já nem sei como me chamo
Talvez algo como crostas, feridas
Ou um misto de desilusões unidas
Erro de Deus, ou só um mero engano

Vou deixar para acabar em outra hora
Este singelo soneto inacabado
(…)

(…)
(…)
E esperar se cumpra inteiro este meu fado


(nota de rodapé)

* Este poema foi escrito a um domingo. Dia em que não costumo usar o ingrediente mais importante para quem tenta escrever poesia; 90% de transpiração. Só com 10% de inspiração deu nisto, um Soneto Inacabado.

- j a godinho -

domingo, fevereiro 24

O meu feijão



Que saudades dos tempos em que a minha avó cozinhava feijão no fogão! Aquele cheiro de feijão catarino, ou manteiga quentinho! A estalar na mão! Assopro a mão, como se estivesse a sentir, ainda, na mão, o quente feijão.
Rebusquei na memória, o dia em que quis ter um bebé!
Tão simples como comer feijão!
A minha mãe trabalhava num consultório, onde havia oito especialidades clínicas diferentes, entre elas, ginecologia.
Um dia perguntei a uma senhora que tinha a barriga muito grande:
- O que é que a Sra. tem?
- Comi muito feijão!
Porque é que os adultos sempre acham que as crianças não pensam? Não sei!
Sei que vi, uns tempos depois, a senhora de barriga vazia, e com um bebé ao colo. Assimilei! Comeu feijões…
Eu também quero ter um bebé. Acabavam-se as desilusões de ter as bonecas que falam e andam, como na televisão e, quando vêm para mim, não!
Sábado à noite, dia da semana sempre romântico, ia dormir a casa da avó. Vou ter um bebé!
- Avó?
- Sim, Nininha!
- Fazes feijão amanhã de manhã?
- Não estava a pensar nisso, mas queres? A avó faz!
Pulava de alegria! Ia ter um bebé! Vou comer feijão! Tanta excitação que quase não dormi!
Quando acordei, senti no primeiro andar, o cheiro de feijão cozido, acabadinho de fazer na cozinha! Pulei da cama, voei escadas abaixo, com ar maroto de quem não conta o segredo, preparei-me para a minha primeira "injeção" de comer feijões de enfiada!
- Está quieta! Estão quentes! Deixa arrefecer!
Mas eu queria tanto um bebé, que pensei que quanto mais cedo e rápido os comesse mais cedo teria o meu presente! Tive que disfarçar, fui-me lavar e vestir, tomar o pequeno-almoço, tudo muito devagar.
- Despacha-te! Que eu vou ao pão e, deixo-te em casa!
Isso é o que ela queria! Eu queria-a dali para fora, para lhe ir ao feijão! Lentamente continuei…
- Pronto! Vou-me embora! Quando saíres fecha a porta!
Felicidade! Quantas letras têm? Não sei! Mas naquele momento, senti cada letra percorrer-me toda! Estava feliz!
Comi todos até rebentar, ficar maldisposta, e gaseada. Era por uma boa causa! Afinal, eu ia ter um bebé. E tudo o que é bom, merece um sacrifício pequeno. Bem grande! Mas estava toda contente!
Final da semana, outro sábado e a barriga nada! Volto a pensar na minha tarefa!
 - Avó? Vais cozer feijão?
 - Não! Vou fazer batata frita para o almoço!
- Faz feijão!
- Não! Ainda me vais explicar o que foi que fizeste ao feijão a semana passada!
Bolas! Pirei-me! Fugi, estava cheia de sono, não estava com tempo para conversas, antes dormir que lhe contar!
Fui-me deitar, a pensar que se calhar já não ia ter o bebé, não perguntei quantos feijões tinha de comer! A primeira desilusão.
Mas nesse fim-de-semana, a minha mãe fez feijão! Não comi foi tanto, porque ela não me deixou. Era para a sopa. Esta gente adulta é assim, tem sempre uma razão para tudo.
E, a barriga nada de crescer, nem um bocadinho. Mostrava e perguntava a toda a gente se achava que eu tinha uma barriga grande. Todos se riam, eu nunca fui cheinha, era sempre a cobaia dos laboratórios quando tinham no mercado um novo produto para engordar.
Eu insistia no feijão. Insisti e insisti. Até que voltei a ver a senhora do feijão. Fui-me a ela, toda zangada, e perguntei-lhe de onde tinha ela recebido o bebé?
- Veio de avião!
Bolas! Andei eu a comer feijão…

(Matilde Rosa)