sexta-feira, fevereiro 28

DIÁRIO D’UM DOBREVIVENTE



----- “ OS DIAS I “ -----

Tenho memórias desses primeiros anos, não muito precisas, mas marcantes de como era a vida nesses tempos. Uma rua pequena, casas minúsculas, completamente apinhadas de gente. Lembro casas de duas ou três divisões, sem luz, água, ou saneamento, onde vivia o casal, um velho e seis ou sete filhos. Crianças sujas, de olhos fundos e barrigas grandes.
E o lixo acumulado no fim de cada rua, pasto das galinhas que também viviam em casa e ratos e moscas, enxames de moscas por todo o lado.
E doenças, as febres, doenças que levavam os mais fracos, debilitados pelo trabalho de sol-a-sol e mal alimentados e mal vestidos. Gente que era detida e espancada por comer a bolota dos porcos.
Era um país nojento este, habitado por um povo feliz por ignorância, apático, conformado e manso como os bois, sem sonhar com outra forma de viver. Um país que alimentava guerras e acumulava toneladas de ouro, roubadas da mesa dos pobres.
E uma pequena classe de privilegiados latifundiários e lacaios e bufos, muitos bufos, sempre prontos a delatar, por inveja os mais esclarecidos. Os que tinham coragem para sair de noite, para roubar o que era seu por direito.

Patrícia Almeida - Pintora


António Coutinho - Pintor


Joaquim António Godinho - Escritor



In ARRUMADOR DE PALAVRAS «O Livro»

Uma brincadeira divertida, gosto deste género de desafios.
Como não trago o dar nas mangas do prometer e palavra minha tem o valor das minhas barbar empenhadas, deixo-lhe bela Sónia, um singelo soneta de minha lavra.
Juro-lhe que não encontrei rima fácil para Sónia e para Pinto só me surgia vinho tinto e absinto, mas lá consegui a duras penas meter esta lança em África.
Sei bem que é muito menos do que merece, mas é o máximo que eu consigo oferecer.

Palavras Novas

Sónia, insónia, ou um sono atribulado
Que invento agora ao correr da pena
De como p’ra agradar a uma morena
Nos braços d’ outra, fico aprisionado

Numa vida de servires estou enredado
Quando por capricho da bela Helena
Me deparo com mais esta pequena
E de Sónia(r) se faz meu negro fado

Não cuido de o fazer por encomenda
Vos juro que só escrevo o que sinto
Até porque as letras não dão renda

Procuro inspiração num vinho tinto
Barato! A não ser que seja prenda.
E hoje tive por musa a Sónia Pinto

PS: Ah! As minhas desculpas se achar pouco. Mas para aumentar o valor, sempre lhe posso acrescentar um beijo.

quinta-feira, fevereiro 27

DIÁRIO D’UM SOBREVIVENTE



--- “ OS DIAS “ ---

Ganhei, não sendo ganhão, comecei a lutar no primeiro instante da minha vida e até hoje, ganhei esta minha batalha contra o esperado desfecho.
Era o menino mais fraquinho que a minha avó, comadre de aparar tantos rebentos, alguma vez vira. Magrinho, de pele e osso, não chorava porque não tinha forças, nem para mamar. Todos pensaram que dali não havia esperança de vida, seriam horas, as que demoraria a ir parar ao Talhão dos Anjinhos. Naquele tempo morriam muitas crianças, daí o cemitério da terra ter um espaço, e bem grande, destinado a elas.
Durante alguns dias, mãe e avó montaram guarda dia e noite, para não passarem pelo desgosto de que o seu menino morresse sozinho.
Mas querem que vos conte um “causo” quase inconcebível? Não morri como era esperado, ganhei o jeito de mamar e, passados uns meses enchi as peles e comecei a berrar, como bezerro desmamado.
Passaram muitos anos, quase cinquenta e cinco, já não tenho tamanho para caber no Talhão dos Anjinhos, que foi desativado.
Tudo isto se deveu à minha bem conhecida teimosia.

- j a g -

Joaquim António Godinho - Escritor



EM BUSCA DE VIDA

Pablo Neruda escreveu, “Confesso que vivi”, eu poderia dizer ou escrever, “Confesso que li, estudei ou sonhei”, mas de vida tenho muito pouco. Vi passa-la pela janela, como a sempre agradável paisagem, de quem viaja num comboio.
Vocês sabem que a vida é deslumbrante para quem a vê de fora? Não temos acesso ao todo, mas só ao que parece, ao que é possível de ser mostrado. A parte essencial é varrida para debaixo do tapete, salvando as aparências.
Um dia parti por aí à procura de saber como era a vida real. Como seriam postos em prática os romances que li, os poetas que bebi com sofreguidão. Queria saber, mesmo que por fora, de longe, como era a vida que eu via passar na minha janela com vistas para o mundo.
Não imaginam como é fácil obter respostas quando se sabem fazer as perguntas certas, quando se orientam as conversas no sentido desejado. Não, não é manipulação, é desejo de conhecimento e para se chegar ao saber, os fins justificam os meios, defendo eu…
É muito fácil dizer para quem se sabe nunca vir a encontrar, o que nunca se diria a um amigo, ou ao que poderíamos ver ao dobrar da esquina. As pessoas falam de como vivem, das expetativas goradas, de vidas sem interesse, abandono, falta de diálogo.
Foi um choque. Salvo raras exceções, muitos raras mesmo, só conheci pessoas desiludidas com a vida. O retorno foi muito diferente do que eu esperava.
Mulheres admiráveis, que não pediam mais para ser felizes, que atenção e um pouco de carinho. Que se sentissem importantes. E infelizmente perderam-se num mar de desilusões.

quarta-feira, fevereiro 26

DIÁRIO D’UM SOBREVIVENTE



--- “ O ADVENTO “ ---

Era um catraio de oito anos, pró gordinho e muito ranhoso. Estava a postos, naquela tarde quente de um Junho de 59.
Quando ouviu o choro e teve luz verde da avó e parteira, correu uns duzentos metros para dar a boa-nova.
- Pai! Já lá temos um ganhão!
Ganhão era a 2ª fase do rapaz pobre naqueles tempos ancestrais. A nossa vida estava programada para ser moleque, (moço de recados das casas ricas), ganhão, (aprendiz de homem) e jornaleiro, com a certeza de ter que trabalhar todos os dias, para comer quando se podia.
Felizmente, alguns anos depois, abriu-se nova estrada de futuro e eu nunca fui moleque nem ganhão e consegui viver num tempo em que era possível comer todos os dias, graças ao esforço dos pais.
Fui para o que o poeta popular, ti Alexandre Malheiro, denominava de Alto Infante, (Passam os Altos Infantes, na carrinha dos estudantes), fui estudar.
Não consegui concretizar a previsão do meu irmão, naquele dia distante.

- j a g -