sexta-feira, novembro 30

13 – Cumplicidades «Luar dos Dias»



Um texto que não precisa ser explicado, tem tudo. De Janeiro/2011.

Cumplicidades

Encontraram-se por acaso numa tarde de um dia longínquo     
Dobraram uma esquina virtual, olharam-se e deram as mãos
Ela serena, apesar dos medos de uma sociedade violenta
Ele cansado de um longuíssimo existir sem viver

Caminharam juntos por tardes e tardes de descobertas
Foram muitas trocas de saberes, de experiências díspares
Ela foi-se tornando cada dia mais confiante, perdendo o medo
Ele no enlevo de ter alguém a ouvi-lo, a beber-lhe as palavras

Um dia, não se sabe bem como e quando, tudo mudou
A amizade feita de confidências e desabafos era outra coisa  
Ele percebeu que não mais podia ser o “poeta de Pessoa”
Teve vergonha e fugiu dela e das histórias, tentou esquecer   

Passaram anos e uma volta da vida tratou de os reaproximar
Vinham agora os dois diferentes, como não podia deixar de ser
Ela a mesma serenidade muito mais culta, mais mulher
Ele mais cansado, mas sem o medo de se expor, de ser ele

Voltaram a dar-se as mãos e olham-se num silêncio cúmplice
Quem sabe um dia, a vida para eles não seja só um sonho.

- j a godinho -

quinta-feira, novembro 29

12 – Divagando «Luar dos Dias»



Um pretenso texto de parabéns, escrito á minha maneira. De Agosto/2011.

Divagando

“Há palavras que de tanto usar se tornam banais. “Parabéns” é uma delas. Devia haver um outro grau de felicitar alguém por mais um aniversário; o normal, para as pessoas comuns e uma palavra nova, diferente, que até podia ser inventada na hora, para quem se gosta muito.
Por exemplo: Repzigue.
Então, todos os dias se inventavam palavras novas que só tinham valor para duas pessoas, para mais ninguém, mas para elas valeria tudo, porque eram únicas como as pessoas.  
E as pessoas tinham que usar uns caderninhos para ir apontando as palavras inventadas e a quem correspondiam, até que elas ganhassem rosto. E os que tivessem caderninhos com mais palavra-novas eram os mais ricos, os mais valorizados, por terem mais amigos.
Talvez um dia as palavras banais caíssem em desuso e se pudessem dizer as coisas com palavras únicas.
Até não ser assim eu vou cumprindo o rito anual para as pessoas de quem gosto, de uma outra maneira, como eu quero, divagando ou contando histórias. Tentando fazer-lhes saber que são diferentes e únicas para mim. E merecem ter uma palavra com o rosto delas, que só me façam lembrar delas.”

- j a godinho -

segunda-feira, novembro 26

11 – Aguarela Rural «Luar dos Dias»



É um dos meus textos mais antigos, talvez 2009. Ao princípio tinha como sub-título (influências). Ainda hoje me dizem que tem muito de Cesário Verde, fico contente por ter apanhado “o clima” de alguém que gosto muito.

Aguarela Rural

Bem noite ainda, de um escuro imaculado
Vou para os campos de maresias e geadas
Ao som de chocalhos e balires por todo o prado
Abro o redil, escancaro todas as portadas

É um regalo ver as pressas dos carreiros
De ovelhas espalhando-se p’la ladeira
Procurando landes, sementes dos sobreiros
P’ra matar a fome duma noite inteira

Acolá a mãe que as recentes crias
Amamenta com um olhar de tal amor
Mal elas se distanciam em correrias
Lança um balido de cuidado e dor

Mais ao longe um casal enamorado
Investe no futuro do rebanho                
É a natureza no seu jeito acostumado
De cuidar do meu pão e do meu ganho

Tanta alegria me dá este labor
De mourejar meus dias p’lo montado
Que sempre graças dou ao Criador
Por me fazer alentejano e guardar gado

- j a godinho -

domingo, novembro 25

CUMPLICIDADES

Um pequeno texto escrito a quatro mãos. Descubram quem escreveu o quê.

Livro Antigo

Desfolho um livro velho que há muito não relia, com folhas amarelecidas pelo tempo, gastas pelo contínuo passar dos dedos.
Nelas se revelam, emoções, segredos, histórias reais ou inventadas, memórias saudosistas de um passado, muitas vezes vividas à pressa, sem tempo de as saborear.
Eram paixões que enlouqueciam, que me invadiam a mente e que hoje se perderam na inexorável voragem do tempo?
O meu lamento, a minha quebra de forças, por sentir que não vão voltar mais, a minha eterna saudade daquelas mãos macias que passavam, nos meus cabelos dourados!
O nosso livro continua lá marcado pelo tempo, mas com o mesmo viço em todas as folhas que viro. Ao correr das mãos arranco as mesmas ansiadas palavras, os mesmos gemidos roucos, marcados nos meus ouvidos, apesar do tempo.
E num respirar fundo, fecho o livro que encosto junto ao coração, apertadinho com as minhas duas mãos como se tivera medo que alguém se apoderasse de todo um passado que é só meu, lembranças só minhas de um amor que ainda não morreu.
Que nunca irei enterrar.

Joaquim Godinho & Celeste Leite
        24/Novembro/2012



sábado, novembro 24

10 – Cem escudos «Luar dos Dias»



Eu queria escrever um conto, juro que queria. Mas não consegui, ficou tão curto que não lhe podia chamar mais que cem escudos. Escrito com uma mistura de raiva e despeito, que já passou, em Setembro/2011.

Cem escudos

Ela era uma mulher afirmativa, já em menina o fora. Grávida de certezas, com o rei na barriga, soube sempre conduzir a vida alheia, a sua, perdeu-lhe o mando e ficou só. Tarde triste, uma viela fria e húmida, ela caminha com os ombros pesados de desilusão. A vida que parecera promissora em tempos idos, muito idos, tinha-se encarregado de lhe levar os sonhos; e o que restava era um futuro em que já não acreditava. Ia ensimesmada em negros pensamentos sobre o que o provir lhe reservava, quando reparou num vulto estranho perdido junto ao regato que fazia a escorrência dos beirados.
Baixou-se, num gesto automático, apanhou-o, sacudiu-lhe a água e meteu-o na mala, sem chegar a perceber porque o fez. Talvez porque a vida tinha deixado de fazer sentido e já nem os seus actos, percebia.
Esqueceu o achado na mala jogada no sofá castanho da sala e dedicou-se a tarefas de mais um serão de dona de casa diligente. Tê-lo-ia mesmo esquecido, não fora a cama larga, a noite longa, e aquela nova espécie de inquietação que a solidão traz consigo e que nasce dentro das entranhas.
Correu a buscar a mala, abriu-a e retirou um pequeno estojo de couro que continha um Massajador facial. Sorriu ante a surpresa, mas deitou-o na cama e ficou longos minutos a contemplá-lo e a pensar.
Ainda nessa noite, lavou-o, desinfetou-o, tricotou-lhe um casaquinho de lã e deixou-o na gaveta da mesinha de cabeceira.
Depois, sonhou que era seu marido e se chamava “omem”. Ela, que nunca conheceu um homem com “h”.

- j a godinho -