domingo, março 9

DIÁRIO D’UM SOBREVIVENTE



----- “ AVÔ CHICO I “ -----

Quem tem a sorte de ser alentejano, percebe a importância das alcunhas, a maneira como elas se colam às pessoas, ao ponto de algumas vezes serem incluídas no nome e se estenderem por gerações.
O meu avô Francisco Botas Bernardino, (o Malarranha), nasceu por volta de mil e novecentos, atravessou todo o período revolucionário da implantação da república, sucessivos governos e golpe de estado fascista que proclamou o Estado Novo. Ganhou a alcunha por em criança ter vivido com os pais numa freguesia a uns quarenta quilómetros de Seda, a Malarranha. Quando voltou, correu a notícia entre as crianças amigas, “chegou o Chico, da Malarranha”, daí até o nome colar e ser mais tarde transmitido aos filhos, foi um ápice.
Já o conheci, o outro, mas a minha avó muitas vezes me contou a história do marido, que nem os filhos conheceram.
Era um homem alto e seco, o mais velho dos irmãos ouriços, lia e escrevia sem nunca ter frequentado a escola e durante o tempo de solteiro, só trabalhava nos serviços mais difíceis, portanto os mais bem pagos. Nunca trabalhava na segunda-feira, ficava a acompanhar os amigos “alcagoitos”, (os que não labutavam no campo; comerciantes, sapateiros, alfaiates, correeiros, etc) e nesses dois dias, (domingo e segunda), usava fato completo e uma corrente de ouro a prender o relógio. (essa corrente, relíquia de família, esteve em minha casa até fim dos anos noventa, a minha avó suportou muitos anos de fome, mas nunca se desfez dela).
Crescendo nesse caldo de revoluções, como ao invés da esmagadora maioria, tinha acesso à informação, tornou-se um ferrenho republicano. Em vinte e nove, quando casou, não quis ir à igreja, fez só um casamento civil.
Nessa época os padres eram autênticos rafeiros do latifúndio, (hoje pouco mudaram), viviam dos restos que caíam da mesa dos ricos e dessa coisa nojenta, a congra, que roubavam aos pobres com a ameaça do fogo do inferno. Aproveitavam-se dos que eram ainda mais ignorantes que eles.
A minha mãe nasceu em 1930 e menos de dois anos depois, o meu avô começou a perder a memória. Uma sifles contraída na juventude e mal curada, começou a atacar-lhe o cérebro.

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