quarta-feira, fevereiro 23

Memórias - Vidas Simples

Pelas minhas contas, terá nascido por volta de 1865, chegado a Seda em 1877, era “pechardeco”, natural de Chança e veio trabalhar como “moleque” para casa dos Teixeira (moleque era uma espécie de moço de recados das casas ricas). O primeiro trabalho dum menino antes de chegar a ganhão). Chamava-se António Lourenço, e foi meu bisavô materno.
Por lá conheceu uma criadita, afilhada da casa, chamada Catarina Rosa. Acabaram de se criar juntos e desenvolveram uma antipatia mútua, de todos conhecida, que só terminou quando ela já não podia mais esconder a barriga. Os patrões casaram-nos à pressa, o mal já não tinha remédio e foram pais de oito filhos, cinco rapazes e três raparigas. O meu bisavô era reconhecido na terra como um excelente trabalhador e uma pessoa muito honrada. Era hábito por aqui haver também uma certa deferência por quem tinha vindo de fora.
O ano de 1908 foi de uma grande invernia. Não era possível trabalhar nos campos e lá em casa havia dez bocas famintas. Convencido pelos vizinhos, acompanhou-os uma noite a apanhar uns quilos de bolota, (bolêta). Era um terrível crime nesses tempos no Alentejo, um pobre matar a fome com o que estava destinado aos porcos.
Ele não voltou nessa noite. Perguntados em segredo os companheiros do “roubo”, nada de nota tinha acontecido.
Fizeram o percurso no sentido inverso e encontraram-no. Ao tentar saltar um ribeiro, não alcançou a outra margem. A água gelada, o peso do saco e a correnteza, mataram-no.
Mas quem realmente o matou, foi a fome.

Assim terminou a curta história do meu bisavô “pechardeco".

9 comentários:

  1. Afinal tu tens uma"costela de pchardeco"...!

    A curta história do teu bisavõ, infelizmente terá sido uma entre tantas outras.
    Apesar dum final trágico, não deixa de ser uma bonita história, contada por um bisneto do qual o
    seu bisavô muito se orgulharia.

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  2. Antes do seu nascimento, já tinhas algo a compartilhar conosco, não é por acaso que tens o talento de escrever, acabei de crer.

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  3. Não sei ainda o que é um "pechardeco", apesar de desde pequeno sempre ouvir esse termo, referindo-se a uma familia com esse apelido. Por aquilo que dizes, também eu terei uma "costela".
    Mais, tenho o nome do bisavô, que nunca conheci.Penso que nem a bisavó!
    Não sei onde vais "buscar" estas histórias mas, adoro ouvi-las. Conta mais, conta mais.
    Abraço
    BFS

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  4. Meu Caro
    "Pchardeco" é um natural de Chança.
    E as histórias, contava a nossa avó.

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  5. Acabei de ler a tua "história" e tenho que te dar os parabéns pela forma como transmitiste em meia dúzia de linhas, uma realidade, embora distante, mas carregada de simbolismo, de sentimentos, emoções, com um final triste e sentido. Que melhor forma de descrever a vida, uma vida, com todo um percurso, que inclui a morte, parte integrante dessa mesma vida! Retrataste como ninguém, a fome, a miséria e a luta pela sobrevivência. E quando o autor consegue passar a sua carga emocional, para o leitor e não o deixa indiferente, eis o verdadeiro escritor...Parabéns
    Joaquim Malheiro

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  6. Obrigado amigo Malheiro, faz-se o que se pode.

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  7. Caro contador de histórias, e como te define o amigo Joaquim Malheiro, com alma e coração, obrigado por esta narrativa que nos recorda os momentos difíceis pelos quais os nossos antepassados passaram e a dura realidade da época. Fico muito sensibilizado o final trágico da história que não conhecia. Corrige-me se estiver enganado, mas o António Lourenço era pai do meu avó José Maria Lourenço, e por conseguinte também meu bisavô. Um abraço
    Zé Zacarias

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  8. Uma história de vida relativamente comum nesse tempo,ir às escondidas apanhar umas míseras migalhas para enganar a fome aos filhos. Desta vez com um fim trágico o que deve ter deixado ainda mais em apuros toda a família. O relembrar destas histórias pode servir para que os mais jovens tenham conhecimento que,ainda há bem pouco tempo, a luta dura pela vida não era apenas tema de filmes, era uma realidade dolorosa.
    Fernando Sousa

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