O quintal da Falida, era um mundo, o
nosso mundo, onde os miúdos da rua podiam brincar à vontade. De um lado, a casa
dos meus pais, cozinha e sobrado, onde eu vivi alguns anos, depois a casa da
muralha, da Gertrudes Grifa, do Conduto e das duas filhas. Ao lado a Maria
Carreiras e o Vareirena, um tipo mal-encarado de quem ninguém gostava, era
guarda da casa Pais e passava as noites a perseguir os pobres que tinham que
sair de noite, para arranjar comida para os filhos. Era o lacaio da rua, todos
estávamos avisados que era preciso cuidado com ele. Ao lado, numa casinha
pequenina, vivia a tia Brás, irmã da minha avó e minha segunda avó. A casa
maior, ao fundo era a da Maurícia e do Zé Pequeno, tinham uma penca de filhos,
todos mais velhos que eu. Depois estava o ceto dos porcos e por cima, num
tabuado podre, morava o Manel Falido. Era um solteirão bêbado e só com uma
orelha, que estava quase sempre fora. Quando se embebedava, quase todos os
dias, passava o tempo a gritar; “Eu não tenho medo de ninguém, nasci sem medo”.
Por vezes, nós íamos meter o nariz no tugúrio dele e saíamos sempre cheios de
pulgas.
O tio Zé Pequeno era alpalhoeiro, com um
sotaque carregado, que nunca perdeu e tinha um andar diferente, porque era mole
dos calos, diziam.
Lembro-me dele, à tardinha, depois de vir
do trabalho, com um naco de pão e de toucinho, a caminho da taberna do Gualdino
para o copo de vinho, que sempre mandava apontar no livro dos calotes. Um dia,
o Gualdino, achando a dívida muito grande, chamou-o a contas. Ele, como a
dívida era tão grande que já não a conseguia pagar, leu-lhe a sentença;
“Gualdino, resga o teu, que eu resgo o meu, as contas ficam feitas, tu esqueces
metade e eu faço o mesmo”.
Nesses tempos muitas pessoas só recebiam em dinheiro
no fim do ano, o resto do ano só tinham as “comedias”, de modo que tinham que
viver de fiado. Os logistas, ao fazer as contas, aproveitavam-se de as pessoas
não saberem ler e fazer contas, acabavam sempre por meter a unha. Todos
conseguiram comprar casas e propriedades.
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